O Estado Brasileiro organiza-se sob a égide do Federalismo. Isso quer dizer que o Brasil, em oposição à configuração unitária e centralizada que imperava nos tempos monárquicos da nossa história, escolheu organizar o exercício do Poder Político de forma descentralizada, distribuindo parte dele aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal, entes federados que, em conjunto com a União, formam a República Federativa do Brasil.
Uma das características essenciais dessa organização é a atribuição, pela Constituição Federal, de competências para cada ente federado. Entre essas competências, que o Prof. José Afonso da Silva define em seu Curso de Direito Constitucional Positivo (1999) como “as diversas modalidades de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções”, estão as competências administrativas, legislativas e tributárias. Entre as duas primeiras, temos aquelas relativas aos Recursos Hídricos, que serão objeto de uma primeira aproximação neste trabalho.
O primeiro tema que deve aqui ser abordado, dado o seu relevo no contexto do Estado Federal, é a questão da dominialidade dos recursos hídricos, importante inclusive porque a questão da dominialidade é acompanhada pela questão das competências administrativas em matéria de recursos hídricos.
Desde plano há que se anotar que no regime atual não mais existem as “águas privadas”de que tratava o Código de Águas. Todo e qualquer recurso hídrico é hoje um bem público. Isso não torna o Estado brasileiro proprietário desse precioso bem. Na realidade temos que as águas são bens da coletividade, a ela disponibilizadas com o fito de promover o desenvolvimento econômico e social da nação, observados os postulados da sustentabilidade ambiental. Assim, temos que o Estado brasileiro é gestor das águas em território nacional, estando a seu cargo a proteção, guarda e gestão dos mesmos, sempre visando, à luz do art. 225 da Constituição, a sua preservação para as gerações futuras.
Não faria sentido, num Estado Federal como o nosso, que todos os recursos hídricos estivessem sob a administração de apenas um ente federado. Assim, temos que a Constituição Federal optou por estabelecer, em seu art. 20, III, que são de domínio da União:
“III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;”
Assim, além dos recursos hídricos que estejam em terras da União, temos que recursos hídricos interestaduais ou internacionais são administrados pela União, hoje através da Agência Nacional de Águas. De se anotar que Pompeu critica a subtração das praias fluviais e terrenos marginais da órbita estadual, municipal ou particular (o regime anterior previa todas essas possibilidades), por atentar contra o regime federativo (2010, p. 56), significando verdadeiro confisco. Também importante registrar serem de domínio da União (art. 20, IX) as águas minerais ¹.
Porém, da própria leitura do trecho constitucional acima transcrito, pode-se inferir que nem todos os rios, lagos e correntes d’água estão sob o domínio da União. De fato, o art. 26, I, coloca entre os bens dos estados “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;”. No sistema constitucional brasileiro, portanto, convivem as águas de domínio federal com aquelas de domínio estadual.
De difícil delimitação, porém restou a questão das águas subterrâneas. Ao deixar de mencioná-las ao tratar do domínio da União, acabou restando nas mãos dos Estados a gestão das águas subterrâneas, ainda que muitas vezes elas se estendam pelo subsolo do território de diferentes estados e até países, como é o caso do Aquífero Guarany² .
Da leitura dos dispositivos constitucionais até aqui abordados, emerge a constatação que além de não mais admitir as águas privadas, o nosso sistema também deixou os municípios sem águas sob seu domínio. Assim, a título de exemplo, um rio que tenha sua nascente e sua foz no território de um único município, será, a princípio, de domínio do Estado onde esteja localizado esse Município. Exemplo de tal situação é o chamado Córrego Aricanduva, na Capital Paulista, que ao contrário do que se pensa é de domínio do Estado de São Paulo, e não do Município. Isso não significa de modo algum que esses entes federados estejam alheios aos sistemas estaduais e federais de gestão de recursos hídricos, porém este tema é por demais relevante para ser tratado de modo apenas lateral neste breve ensaio.
Porém, a Constituição Federal não se limitou a tratar da dominialidade, tratando também das competências legislativas em matéria hídrica. As competências legislativas são aquelas que atribuem o poder de legislar, ou seja, de inovar na ordem jurídica, de criar o Direito. O Art. 22, IV da Constituição Federal estabelece que compete privativamente à união legislar sobre águas. Numa leitura assodada, o analista pode concluir que os demais entes federativos não podem legislar sobre as questões hídricas. Tal entendimento certamente iria de encontro à descentralização exigida pela forma federativa do Estado.
Entretanto, o recurso à doutrina sobre o tema vem ao socorro do analista rumo a uma compreensão mais correta do regime constitucional das águas brasileiras. Cid Tomanik Pompeu, que por anos honrou o Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo fazendo parte de sua Douta Procuradoria Autárquica, leciona que “no campo hídrico, a União tem dupla competência: (i) cria o direito sobre as águas, quando legisla privativamente; e (ii) edita normas administrativas sobre as águas de seu domínio”(2010, p. 50). Assim sendo, aos demais entes resta a competência para legislar editando normas administrativas versando sobre a gestão de suas águas. Assim, ao estabelecer normas para a emissão de Autorizações ou Concessões para uso de recursos hídricos (as famosas Outorgas), um determinado Estado da Federação Brasileira está editando normas da segunda classe proposta por Pompeu.
De todo o exposto, ressalta que o regime de administração dos recursos hídricos brasileiro exige, por sua própria natureza, um arranjo colaborativo entre os entes federados. Se a Constituição Federal promove uma concentração excessiva de competências em matéria de recursos hídricos nas mãos da União Federal (seguindo, aliás a regra geral da nossa Carta Magna- algo a ser lamentado, sem dúvida alguma), não podem os demais Entes Federados, em particular os Estados da Federação, omitirem-se de suas atribuições . Há espaço para a criação de um regime de gestão das águas racional, equilibrado e em constante evolução mesmo em nível estadual. Abrir mão dessa janela de oportunidades seria (aliás, é) um grave erro e, vale dizer, uma omissão inconstitucional por parte dos Estados.
¹ Tema extremamente controverso é a definição de água mineral, já que o Código de Águas Minerais elege como elemento-chave da tal “mineralidade” a ação medicamentosa, e não consta que tenha sido convenientemente esclarecido o que seria “ação medicamentosa”, já que qualquer água pode ter efeito medicamentoso (por exemplo, para uma criança sofrendo de desidratação, qualquer ingestão de água tem esse efeito, independentemente das características físico-químicas da água).² Interessante trabalho sobre o tema é a Comunicação de Fabiana Paschoal de Freitas no XIV Congresso Brasileiro de Águas SubterrÂneas.
Giuliano Savioli Deliberador
Advogado formado pela PUCSP, internacionalista pelo IRI-USP. Aluno do Programa de Mestrado em Direito do Estado da Fac. de Direito da USP.
Chefe de Gabinete do Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de SP.